Por unanimidade, os ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça negaram recurso da defesa da juíza Sonja Farias Borges de Sá e mantiveram sua condenação a três anos e três meses de prisão, em regime semiaberto, por crime de peculato-desvio. Ela é acusada de usar servidores comissionados do Judiciário para 'serviços domésticos' - incluindo babá do filho, cuidados com o cachorro, segurança, motorista, secretária, jardineiro e outras tarefas como idas ao banco, compras de mercado e pagamento de contas pessoais.
Nos autos do processo, a juíza - agora aposentada - negou ilícitos.
Ao Estadão, os advogados Francisco Monteiro Rocha Jr. e João Rafael de Oliveira, constituídos por Sonja Sá, informaram que vão recorrer ainda no âmbito do STJ e até ao Supremo Tribunal Federal. "A luta contra os desmandos e ilegalidades no âmbito do Poder Judiciário não pode se frustrar com a criminalização de bodes expiatórios", disseram.
Na ocasião em que fez uso de funcionários públicos para jornadas de seu interesse pessoal, segundo a acusação do Ministério Público, entre julho de 2005 e dezembro de 2007, Sonja exercia a função de juíza no município de Jaciara, interior de Mato Grosso, a 143 quilômetros de Cuiabá.
O que despertou a atenção dos investigadores é que o endereço residencial da magistrada ficava em Curitiba - vinte horas e 1525 quilômetros separam Jaciara da capital paranaense.
O prejuízo aos cofres do Tribunal de Justiça estadual, calculado à época, chegou a R$ 145 mil.
O ministro Sebastião Reis Júnior, relator, foi taxativo ao recusar os argumentos em recurso de agravo da defesa de Sonja. "O fato é que a Corte estadual (Tribunal de Justiça de Mato Grosso) manteve a condenação da agravante (em primeiro grau), com base em uma análise detalhada dos elementos probatórios que confirmaram a materialidade e autoria do delito de peculato."
Reis Júnior destacou trecho do acórdão da Corte estadual, segundo o qual Sonja, 'valendo-se de seu cargo público de magistrada, contratou servidores pagos pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso para desempenhar serviços particulares em sua residência, sem qualquer correlação com os cargos públicos que ocupavam'.
O ministro anotou que 'essa prática foi corroborada por depoimentos de testemunhas, que confirmaram que os serviços prestados eram de cunho doméstico e não relacionados ao cargo público para o qual foram nomeados'.
'Cuidar da criança e pagar as contas'
O Tribunal de Justiça assinalou que Sonja lotou os comissionados em seu gabinete na 1ª Vara da Comarca de Jaciara. Eles 'sequer conheciam' a comarca onde estavam nomeados ou até mesmo o próprio Estado de Mato Grosso.
Segundo os autos, uma testemunha relatou que 'foi contratado pela magistrada para desempenhar as suas atividades na residência dela, substituindo outra servidora cuja função era controlar a agenda, cuidar de uma criança e pagar as contas de Sonja'. "Posteriormente, também desempenhou a função de motorista."
Outra testemunha contou que foi contratada pela juíza para 'prestar serviços de secretária particular, fazendo tarefas de ordem doméstica, na residência dela, localizada na cidade de Curitiba'.
Uma terceira testemunha declarou. "Foi nomeado para exercer o cargo de agente de segurança, lotado no gabinete da 1ª Vara da Comarca de Jaciara, da qual Sonja Sá era a juíza titular; no entanto desempenhava o seu trabalho na residência dela na cidade de Curitiba, destacando que a magistrada estava afastada por problemas de saúde e que foi contratado inicialmente para ser seu segurança, mas, posteriormente, exerceu as atividades de babá, motorista, jardineiro, conselheiro, entre outras funções."
'Atipicidade da conduta'
A juíza negou o crime de peculato-desvio atribuído a ela. Mas o tribunal concluiu. "É forçoso reconhecer a existência de elementos probatórios suficientes para comprovar a conduta criminosa narrada na acusação, uma vez que, na condição de magistrada, desviou valores do erário estadual, mediante a indicação e a admissão de oito pessoas em cargos comissionados em seu gabinete - no período julho de 2005 a dezembro de 2007 -, as quais, na realidade, prestavam serviços particulares diversos para ela".
A defesa argumentou, ainda, a atipicidade da conduta imputada a Sonja, 'ante a inexistência de ardil ou porque o tipo penal não estabelece a prestação de serviços como objeto material do crime de peculato'.
O tribunal derrubou essa linha da defesa. "Impõe-se registrar que, na espécie, o objeto material pretendido com a conduta perpetrada são os valores, os quais foram utilizados para pagamento de empregados particulares."
Subterfúgio
"É clarividente que a nomeação dos servidores para o cargo em comissão foi apenas um subterfúgio para acessar a remuneração que seria paga por este Tribunal de Justiça, a despeito de tais pessoas terem sido contratadas para prestar serviços particulares, de ordem doméstica, à apelante como se depreende dos depoimentos colhidos na instrução probatória, daí por que não há como conceber interpretação diversa, que não pela tipicidade da ação praticada, tal como corretamente o fez o juízo de primeiro grau", assinalou o tribunal.
Em outro trecho do acórdão, o tribunal de Mato Grosso anotou. "Mesmo que as atribuições dos cargos de secretária e agente de segurança pudessem ser desempenhadas em local diverso do gabinete da magistrada, é certo que a realização de atividades de cunho doméstico, que não eram inerentes ao cargo público para os quais foram nomeados, visando apenas o atendimento das necessidades particulares da apelante (cuidar de seu filho, do cachorro, ir ao banco, pagar contas pessoais, fazer compras de mercado...), configura, inegavelmente, a hipótese de peculato-desvio, previsto no artigo 312, caput, segunda parte, do Código Penal." "Dessa forma, fica evidente a irregularidade nas contratações para os cargos comissionados de secretária e agentes de segurança, respectivamente, tendo em vista que a apelante (Sonja) os nomeou para cargos em comissão de natureza absolutamente distinta das funções efetivamente realizadas por eles, embora o dinheiro desviado fosse destinado ao pagamento por trabalho que deveria ter sido prestado ao Poder Judiciário mato- grossense, tornando-se incabível, destarte, a absolvição", crava a sentença.
Em seu voto, o ministro Sebastião Reis Júnior observou que não há que se falar de remuneração que já pertencia ao funcionário. "Note-se que a conclusão da Corte estadual foi no sentido de que não se tratava de servidores públicos que foram desviados de sua função, mas de indivíduos admitidos em cargo de confiança com o exclusivo propósito de prestar serviços particulares para a então magistrada." Tal fato é reforçado, segundo Reis Júnior, ao se considerar que Sonja se encontrava afastada de suas funções por licença médica. "Por tal motivo, não havendo violação do artigo 312 do Código Penal, a desconstituição da conclusão do Tribunal estadual demandaria revolvimento de matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância extraordinária."
Em primeira instância, Sonja pegou uma pena mais elevada, seis anos de reclusão. O tribunal estadual reduziu a sanção a três anos e três meses, mantida pelo STJ. Para a defesa, a sentença violou o artigo 59 do Código Penal, 'visto que a valoração negativa das circunstâncias do crime e das consequências foi baseada em fundamentação genérica e inidônea, especialmente quanto ao prejuízo ao erário'.
Reis Júnior concluiu que não há razão para reformar a sentença 'se o Tribunal apresenta fundamentação idônea para manutenção do regime inicial do cumprimento de pena, mesmo se reduzida a reprimenda, uma vez que pode valer-se de fundamentos diversos dos constantes da sentença para se manifestar acerca da operação dosimétrica e do regime inicial fixado para o cumprimento da pena, desde que não haja agravamento da situação final do réu'.
COM A PALAVRA, A DEFESA
Os criminalistas Francisco Monteiro Rocha Jr. e João Rafael de Oliveira, constituídos por Sonja Sá, informaram ao Estadão que 'não se trata de decisão definitiva' e que irão recorrer.
"A defesa da dra. Sonja Farias Borges de Sá vem a público, a respeito do julgamento realizado pelo Superior Tribunal de Justiça, esclarecer:
Deve ser primeiramente esclarecido que não se trata de decisão definitiva. A própria Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça voltará a analisar o tema em embargos de declaração que serão opostos contra a referida decisão. A Seção Criminal do STJ (que reúne as Quinta e Sexta Turmas) também deverá analisar o caso em sede de embargos de divergência que, posteriormente, serão interpostos. E, no caso de serem inexitosos tais recursos, o Supremo Tribunal Federal será conclamado a se manifestar sobre a não aplicação da sua própria jurisprudência.
O recurso ao STF terá como objeto o pedido de aplicação do entendimento pacífico da Corte Suprema sobre o tema, segundo o qual, 'a utilização, em proveito próprio ou alheio, dos serviços executados por quem é remunerado pelos cofres públicos não se configura em desvio ou apropriação de bem móvel' (Ação Penal 504, relatora ministra Carmen Lúcia, relator para acórdão o ministro Dias Toffoli, Segunda Turma do STF, julgado em 9 de agosto de 2016, DJe de 1º/8/2017). Tal entendimento não foi analisado pelo STJ até o momento.
Como se isso já não bastasse, nos próximos recursos dirigidos ao próprio STJ, será novamente levantada a questão de que no âmbito de uma ação civil pública sobre os mesmos fatos, o próprio Tribunal de Justiça do Mato Grosso, entendeu que não teria havido dolo por parte da dra. Sonja - decisão essa que transitou em julgado - visto que foi a própria Corte mato grossense o órgão que autorizou a cessão de assessores para a magistrada. Tais argumentos tampouco foram analisados pelo STJ até o momento.
Por fim, a defesa tem a convicção de que a luta contra os desmandos e ilegalidades no âmbito do Poder Judiciário não pode se frustrar com a criminalização de bodes expiatórios, ao arrepio de entendimentos jurídicos consolidados e de um processo justo."