Depoimentos das testemunhas convocadas pela defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de outros réus na ação penal sobre tentativa de golpe de Estado indicam que o ex-chefe do Executivo agiu nos bastidores para tentar rever o resultado que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente em 2022.
Três testemunhas relataram ao Supremo Tribunal Federal (STF) que Bolsonaro consultou a possibilidade de "virar a mesa" pelo menos a generais das Forças Armadas, discutiu a possibilidade de prender ministro do STF Alexandre de Moraes e procurou irregularidades que pudessem assegurá-lo no comando do País.
Contaram essas situações o ex-comandante da Força Aérea Brasileira (FAB) Carlos Almeida Baptista Junior, o ex-chefe do Exército Brasileiro Marco Antônio Freire Gomes e o ex-advogado-geral da União Bruno Bianco.
A oitiva dos depoentes do chamado "primeiro núcleo" acusado de tentativa de golpe de Estado no Brasil foi encerrada nesta segunda-feira, 2, com o depoimento do senador Rogério Marinho (PL-RN).
Bolsonaro foi visto acompanhando alguma das oitivas das testemunhas - isso ocorreu nesta segunda-feira.
Fazem parte do "núcleo 1" oito pessoas: Bolsonaro, o ex-ministro Walter Braga Netto, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno, o deputado federal Alexandre Ramagem, o ex-chefe da Marinha Almir Garnier Santos, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
Ao todo, foram ouvidas 52 pessoas em dez dias de sessão entre generais, senadores, ex-ministros, secretários, funcionários da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o vice-presidente no governo Bolsonaro, senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS).
Das 52 testemunhas, a defesa elencou 50 - outras cinco foram convocadas pela acusação, feita pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. No total, houve 28 desistências: uma da acusação e 27 da defesa.
Com o que foi ouvido dos depoentes, o cenário ainda complica Bolsonaro, que responde criminalmente organização criminosa (pena de três a oito anos, podendo chegar a 17 com agravantes), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (pena de quatro a oito anos), golpe de Estado (pena de quatro a 12 anos), dano qualificado com uso de violência e grave ameaça (pena de seis meses a três anos) e deterioração de patrimônio tombado (pena de um a três anos).
Os advogados questionaram as testemunhas, com mais frequência, sobre três episódios: uma reunião ministerial de julho de 2022 - quando Bolsonaro pediu união para "fiscalizar" as urnas eletrônicas e Heleno falou em "virar a mesa" -, as blitze no Nordeste durante o segundo turno e uma live de Bolsonaro de 2021, em que ele atacou as urnas sem provas.
Algumas das testemunhas ouvidas foram indiciadas ou estão sob investigação em outros inquéritos (um, sobre as blitze no Nordeste e, outro da Abin paralela). Nesses casos, Moraes, relator da ação penal, ressalvou que se prejudica a integridade do depoimento dessas pessoas, já que elas podem mentir já que podem virar réus.
O general Freire Gomes - testemunha da acusação e das defesas de Bolsonaro, Cid, Garnier e Oliveira - confirmou que recebeu um plano do governo para impedir a posse de Lula.
Freire Gomes disse que se reuniu com Bolsonaro, os outros dois chefes das Forças Armadas e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, então ministro da Defesa, para discutir o conteúdo da "minuta golpista". Esse texto foi encontrado pela Polícia Federal (PF) na casa de Anderson Torres.
O general disse que se posicionou contra a tentativa de intervir no processo eleitoral e alertou Bolsonaro que ele poderia ser "enquadrado juridicamente".
Segundo o ex-comandante, a chamada "Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro", manifesto foi assinado por 37 militares e recebido por Mauro Cid, foi interpretada como uma pressão para que ele aderisse a uma tentativa de golpe de Estado.
Moraes repreendeu Freire Gomes durante o depoimento na sede da Corte. O magistrado afirmou que o militar mudou a versão dada à PF de que o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier Santos teria concordado com o plano de golpe de Jair Bolsonaro.
No depoimento, o ex-comandante disse não ser possível saber se houve adesão de Garnier à tentativa de golpe. Moraes disse que ele pensasse bem antes de responder, porque "testemunha não pode omitir o que sabe".
"Se mentiu na polícia, tem que dizer que mentiu na polícia. A testemunha foi comandante do Exército, está preparado para situações de pressão", disse o ministro relator. "O senhor disse na polícia que Garnier se colocou à disposição do presidente. Ou o senhor falseou na polícia ou está falseando aqui."
Garnier é apontado pela Polícia Federal como o comandante das Três Forças que teria aderido ao golpe. Delações feitas à PF indicam que o ex-chefe da Marinha chegou a dispor suas tropas para a intentona golpista.
A informação foi confirmada no depoimento de Baptista Júnior, ex-FAB, ao STF. "O almirante Garnier não estava na mesma sintonia, na mesma postura que o general Freire Gomes. Em uma dessas reuniões, chegou a um ponto em que ele falou que as tropas da Marinha estariam à disposição do presidente", disse.
Nesse mesmo testemunho, Baptista Júnior disse que, na primeira quinzena de novembro de 2022, houve um "brainstorming" sobre a possível prisão de Moraes em uma reunião no Palácio da Alvorada. Essa discussão contou com a presença de Bolsonaro e outros chefes das Forças Armadas.
"Isso era no 'brainstorming' das reuniões, isso aconteceu. Eu lembro que houve essa cogitação de prender o ministro Alexandre de Moraes, que era presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). 'Amanhã o STF vai dar o habeas corpus para soltar ele e nós vamos fazer o quê? Vamos prender os outros?'", afirmou Baptista Júnior, sem dizer quem era o interlocutor.
Também depois de ser derrotado em 2022, Bolsonaro procurou o ex-advogado-geral da União Bruno Bianco para saber da possibilidade de reverter o resultado eleitoral.
Segundo Bianco relatou ao STF, Bolsonaro perguntou se houve problema jurídico no resultado - a resposta foi negativa, ainda de acordo com ele. O ex-presidente estava novamente acompanhado dos chefes das Forças Armadas.
O ex-presidente também foi acusado de consultar locais de votação em Lula para repassar à Polícia Rodoviária Federal (PRF). O ex-analista de inteligência da Coordenação-Geral de Inteligência do Ministério da Justiça Clebson Ferreira de Paula Vieira afirmou que recebeu encomendas de estudos sobre a distribuição de agentes da PRF às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2022.
As ordens, segundo ele, partiram da então secretária de Segurança Pública da pasta, Marília Ferreira de Alencar, a única mulher que é ré nessa ação penal. "Recebi duas demandas, que passaram direto dela para mim. A primeira foi a análise de dados de concentração de votos acima de 75%, tanto para Lula quanto para Bolsonaro. Solicitou para mim que eu fizesse algumas impressões e algumas planilhas. A segunda foi a distribuição da Polícia Rodoviária Federal, um painel para possível tomada de decisão", disse no depoimento.
Estratégia comum da defesa de todos os réus do primeiro núcleo acusado da tentativa de golpe foi ouvir pessoas próximas que negam terem sido procuradas sobre algum plano golpista.
Bolsonaro convocou o senador Ciro Nogueira (PP-PI), o governador Tarcísio de Freitas e Mourão como testemunhas - todos os três relataram não terem sido procurados para reverter a vitória de Lula e relatam que Bolsonaro estava "triste" e "isolado" após ser derrotado por Lula.
Tarcísio disse não ter conhecimento de atos no Planalto que levaram ao 8 de Janeiro, Nogueira afirmou que a transição foi feita para conter caminhoneiros que bloqueavam rodovias no Brasil e Mourão ainda culpou o governo Lula pelos ataques golpistas que depredaram a sede dos Três Poderes.
"Encontrei um presidente triste, resignado", disse Tarcísio, em breve depoimento. Esse assunto (tentativa de golpe) nunca veio à pauta."
Ao STF, Mourão disse que se reuniu com Braga Netto, vice na chapa de Bolsonaro e com o então ministro da defesa Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira algumas vezes depois da eleição de 2022, mas tratava apenas de "assuntos meramente do dia a dia da caserna".
Mourão foi especialmente elogioso a Mauro Cid durante a oitiva. Ele disse que Cid era "um filho que a gente tem na vida militar".
Assim como ocorreu com Freire Gomes, o ministro relator da ação penal, Alexandre de Moraes, chegou a interromper perguntas e o depoimentos de testemunhas durante a oitiva. As queixas foram especialmente a análise dos acontecimentos dos depoentes.
Em um dos episódios, Moraes ameaçou dar voz de prisão ao ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo, testemunha de Garnier.
Rebelo disse que a fala de Garnier em "dispor a Marinha" para uma tentativa de golpe não poderia ser interpretada literalmente, provocando uma interrupção de Moraes.
"O senhor estava na reunião quando o almirante Garnier falou essa expressão?", perguntou o ministro. Rebelo respondeu negativamente. "Então, o senhor não tem condição de avaliar a língua portuguesa naquele momento. Atenha-se aos fatos", repreendeu Moraes.
"A minha apreciação da língua portuguesa é minha e não admito censura", retrucou Rebelo. Moraes então ameaçou prender o ex-ministro. "Se o senhor não se comportar, o senhor vai ser preso por desacato", respondeu o magistrado.
Moraes deu broncas, entre outros, com a defesa de Bolsonaro, quando perguntaram a Mourão sobre a avaliação dele sobre o 8 de Janeiro. "A testemunha não é um perito. Testemunha não pode chegar a nenhuma conclusão", afirmou.
Isso também ocorreu com o advogado de Anderson Torres, Eumir Novacki. Moraes acusou Novacki de induzir o testemunho de Freire Gomes. "Não vou permitir que a vossa senhoria faça circo no meu tribunal", chegou a falar Moraes.