Os ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), deram nesta terça-feira os primeiro votos para condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os outros sete réus do "núcleo crucial" da trama golpista. Com os dois primeiros posicionamentos na Primeira Turma do STF, falta um voto para formar maioria pela condenação de Bolsonaro e dos outros acusados - entre eles militares de alta patente.
A Primeira Turma é composta por cinco ministros e a votação será retomada nesta quarta-feira com o voto de Luiz Fux. Como relator, Moraes abriu a votação, prevista para terminar na sexta-feira. As penas serão definidas ao final, se houver maioria a favor da condenação - elas poderão chegar a até 43 anos de prisão em regime fechado.
Em um voto extenso, com centenas de páginas, Moraes seguiu a mesma lógica da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, para defender a condenação dos réus. O ministro fez uma linha do tempo para mostrar que as provas compõem um contexto de planejamento de um golpe de Estado. Ele abriu a lista de atos preparatórios para o golpe com a tentativa de minar a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro, que teria sido iniciada em junho de 2021. Como na acusação formal, o ex-presidente foi descrito como o líder da articulação golpista.
Foram citadas diversas declarações de Bolsonaro com ataques ao Judiciário e questionamentos à Justiça Eleitoral, o que, no entendimento de Moraes, levam o ex-presidente à condição de "réu confesso".
Além do ex-presidente, respondem ao processo Walter Braga Netto (ex-ministro da Defesa e Casa Civil), Augusto Heleno (ex-ministro do GSI), Alexandre Ramagem (deputado e ex-diretor da Abin), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa), Almir Garnier (ex-comandante da Marinha) e Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro).
DOSIMETRIA E 'TIRANIA'. Dino deu o segundo voto para condenar o ex-presidente e os outros réus por todos os cinco crimes imputados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) - à exceção de Ramagem, todos respondem por organização criminosa, tentativa de abolição violenta do estado de direito, golpe de Estado, dano qualificado com uso de violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
Dino antecipou que vai sugerir dosimetrias mais duras para Bolsonaro e Braga Netto, que, na avaliação dele, exerceram "papel dominante" no plano. Para ele, embora todos os réus tenham participado da conspiração golpista, os níveis de envolvimento e culpa são diferentes. Segundo o ministro, Paulo Sérgio, Heleno e Ramagem tiveram "participação de menor importância".
"Nós estamos aqui fazendo o que nos cabe, cumprindo o nosso dever, isso não é ativismo judicial, isso não é tirania, não é ditadura. Pelo contrário: é a afirmação da democracia que o Brasil construiu", disse Dino ao concluir o voto em uma resposta indireta ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que, em ato bolsonarista no 7 de Setembro, acusou Moraes de "tirania" e a Corte de exercer uma ditadura no País.
O julgamento é considerado histórico. É a primeira vez que um ex-presidente e oficiais do alto escalão das Forças Armadas respondem na Justiça por atentar contra a democracia no Brasil.
ANISTIA. Apesar das pressões do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que impôs sanções financeiras e diplomáticas a Moraes em retaliação ao julgamento, e de aliados do ex-presidente, que tentam emplacar um projeto para anistiar os implicados pelo 8 de Janeiro, Moraes foi contundente ao defender as condenações. O voto foi carregado de críticas aos réus, comparados a "terroristas" e "delinquentes do PCC".
Dino, por sua vez, afastou a possibilidade de uma anistia para Bolsonaro. O ministro resgatou jurisprudência da Corte e citou votos de colegas em julgamentos que trataram de perdão a crimes contra o estado de direito, a exemplo do indulto concedido por Bolsonaro ao ex-deputado Daniel Silveira. Todos foram contra anistiar investidas contra a ordem democrática.
Dino leu o voto de Fux: "Crime contra o estado de democrático de direito é um crime político e impassível de anistia, porquanto o estado democrático de direito é uma cláusula pétrea, que nem mesmo o Congresso pode suprimir".
'PROJETO AUTORITÁRIO'. Como relator do caso, Moraes ganhou protagonismo no processo, assim como em outras investigações que pressionam Bolsonaro. Ele supervisionou o inquérito, autorizou diligências e conduziu interrogatórios de testemunhas e réus. Na terça-feira, foi o primeiro a votar.
"O Brasil quase voltou a uma ditadura que durou 20 anos porque uma organização criminosa constituída por um grupo político liderado por Jair Bolsonaro não sabe perder eleições", afirmou Moraes, concluindo que o ex-presidente tinha um "projeto autoritário" de poder. "Não é possível banalizar o retorno a esses momentos obscuros da história."
Pelo raciocínio do ministro, o convencimento do STF sobre o plano de golpe começou a ser formado ainda na fase das condenações de réus do 8 de Janeiro, quando radicais invadiram e vandalizaram os prédios dos Poderes em Brasília.
Para Moraes, o ex-presidente é a peça central em uma trama que já foi reconhecida pelo Supremo, e seu julgamento é apenas o ato final da Corte. Segundo a linha de argumentação apresentada no voto, absolver Bolsonaro seria negar tudo o que o STF julgou sobre os atos golpistas na capital federal.
A reunião do ex-presidente com embaixadores estrangeiros, em julho de 2022, que levou a Justiça Eleitoral a decretar a inelegibilidade de Bolsonaro, foi rememorada em uma referência velada a Trump. Moraes classificou o encontro como um momento de "entreguismo nacional" e, sem mencionar diretamente as interferências do governo americano no julgamento, disse que "os últimos acontecimentos" demonstraram que a reunião foi um esforço para fazer o Brasil retroceder ao colonialismo, em uma "tentativa de retorno à posição de colônia brasileira, só que não mais de Portugal".
Reações do governo passado e de seus aliados, articuladas publicamente, foram destacadas, como a nota do Ministério da Defesa que colocou em dúvida a lisura das eleições e a representação do PL, partido de Bolsonaro, para anular parte dos votos do segundo turno de 2022.
Ao conectar os diferentes episódios como atos executórios do plano de golpe, assim como fez a PGR, o ministro procurou neutralizar um dos principais argumentos da defesa de Bolsonaro: o de que o ex-presidente não colocou em prática nenhuma medida de exceção e que houve mera cogitação de alternativas previstas na Constituição.
"Não confundamos consumação do golpe com consumação do crime de golpe de Estado. São coisas diversas. A mera tentativa consuma o crime", disse o ministro. "Se houver a consumação, quem vai exercer o poder de maneira ditatorial e tirânica não vai permitir que se responsabilize." Em interrogatório, o ex-presidente admitiu ter considerado decretar estado de defesa ou de sítio, mas alegou que desistiu da ideia após concluir que as medidas não teriam viabilidade.
Moraes deu destaque a documentos que corroboram a acusação, a exemplo das diferentes versões da minuta de decreto para anular o resultado das eleições de 2022, prender autoridades, intervir no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e baixar medidas de exceção. As "minutas do golpe", como ficaram conhecidas na investigação, foram encontradas com Torres e Cid.
O voto também cita o discurso que, segundo a PGR, seria lido por Bolsonaro em pronunciamento em rede nacional após assinar um decreto golpista. O documento apócrifo foi apreendido pela Polícia Federal na sala do ex-presidente na sede do PL, em Brasília.
'BARQUINHO DE PAPEL'. Também cita o Punhal Verde e Amarelo, plano, segundo a acusação, para assassinar Moraes e o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. O arquivo foi impresso no Palácio do Planalto. A autoria é atribuída ao general Mário Fernandes, réu no núcleo operacional do golpe. Depois de imprimir o documento, o general foi ao Palácio do Alvorada, residência do presidente, onde ficou cerca de uma hora com Bolsonaro. Para Moraes, a dinâmica comprova que o então presidente sabia do plano.
"Não é crível acreditar que Mário Fernandes fez barquinho de papel com a impressão do Punhal Verde e Amarelo. Isso é ridicularizar a inteligência do tribunal", afirmou o ministro. "Com armamento pesado de Forças Especiais do Exército se pretendia matar o presidente do Tribunal Superior Eleitoral e com envenenamento ou remédio para induzir a colapso orgânico se pretendia matar o presidente eleito. Não é possível normalizar."
Outros planos, como Operação Luneta, Operação Copa 2022 e Operação 142, foram mencionados. Depoimentos dos ex-comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos Baptista Jr., que confirmaram ter sido abordados por Bolsonaro com a proposta de golpe, também foram citados por Moraes.
Os próximos ministros a se manifestarem são Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, que, como presidente da Primeira Turma, vota por último. Fux sinalizou que vai divergir de Moraes em aspectos preliminares do processo.