A Polícia Civil colocou o ex-governador Mauro Carlesse no topo da pirâmide de uma organização criminosa que se teria instalado no Tocantins para fraudes à licitação, corrupção, lavagem de dinheiro e desvio de verbas públicas em contrato firmado durante sua gestão (2018-2022).
Relatório de 169 páginas da Operação Via Avaritia, enviado à 3.ª Vara Criminal de Palmas, imputa crimes a 26 investigados, incluindo Carlesse, quatro ex-secretários de Estado, sete servidores públicos e empresários. A Polícia diz ter reunido 'indícios veementes' do envolvimento do ex-chefe do Executivo.
"O relatório é abusivo, ilegal e inconstitucional", reage o criminalista Nabor Bulhões, que defende o ex-governador. "Não tive acesso a esse relatório, mas afirmo que a investigação da Polícia Civil jamais poderia ter sido sequer iniciada. Ela não detém competência para realizar tal procedimento porque a instância correta para o caso é o Superior Tribunal de Justiça." Na avaliação de Bulhões, 'trata-se de inquérito com uma clara e absurda conotação política para atingir Carlesse'.
O Estadão teve acesso ao documento, subscrito pelos delegados Romeu Fernandes de Carvalho Filho e Guilherme Rocha Martins, da Divisão Especializada de Repressão à Corrupção. "A investigação comprovou o envolvimento direto do ex-governador e de quatro ex-secretários de Estado, estes atuando na estrutura e funcionamento da organização criminosa", afirmam.
"Outros sete servidores públicos, lotados em secretarias e órgãos estaduais diversos, contribuíram de maneira consciente para a prática dos ilícitos", segue o relatório.
Um único contrato, firmado com a Prime Construções, teria levado a um prejuízo de R$ 10,3 milhões, indica laudo pericial do Instituto de Criminalística da Polícia Científica - Núcleo Especializado em Engenharia Legal.
As investigações apontam que, no momento da deflagração da primeira fase da Operação Via Avaritia, a organização criminosa articulava a adesão a uma segunda ata de registro de preços, com valor global estimado em R$ 2 bilhões.
O relatório atribui a Carlesse a liderança de organização criminosa majorada.
Em outubro de 2021, o então governador foi afastado do cargo por seis meses em decisão do STJ no âmbito de uma outra investigação, de competência da Polícia Federal, sobre suposto pagamento de propinas no âmbito do plano de saúde dos servidores estaduais e obstrução de investigação.
O relatório da Polícia Civil do Tocantins tem status parcial e deve subir para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que detém atribuição para processar autoridades com foro privilegiado mesmo após encerrado o mandato.
Os delegados interromperam a investigação, sem indiciamentos formais, no último dia 29 de abril alegando recente modificação de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), publicada em 18 de março - nessa data, o STF firmou a tese de que a prerrogativa de foro especial para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício.
A Polícia enviou cópia do relatório à Controladoria-Geral do Estado para fins de apuração de eventual responsabilidade disciplinar dos servidores citados, bem como da possível responsabilidade administrativa das pessoas jurídicas implicadas. Outra cópia do documento chegou à Procuradoria-Geral do Estado para eventual propositura de ação de improbidade administrativa.
A Polícia sugeriu o levantamento do sigilo dos autos 'ante o manifesto interesse da sociedade nos casos que envolvem crimes contra a administração pública e desvio de recursos públicos, até mesmo para o adequado exercício do controle social da atividade da persecução penal'.
O inquérito policial foi iniciado em 2019 para apurar crimes contra a administração pública envolvendo contrato firmado pela gestão Carlesse com a empresa Prime Construções Ltda. Segundo o relatório, foi constatado desvio de R$ 10,3 milhões, valor oriundo de contrato de manutenção e conservação de imóveis públicos. Parte do dinheiro, pontua o inquérito, 'foi rastreada e identificada retornando aos próprios investigados, que usaram empresas de fachada, criadas para dissimular a origem ilícita dos valores'.
O ponto central do inquérito versa sobre frustração do caráter competitivo de licitação, peculato, corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa supostamente ocorridos no âmbito de licitação 'carona' promovida pela Secretaria da Infraestrutura, a partir da contratação da Prime para prestação de serviços de manutenção e conservação de imóveis públicos.
"Com o aprofundamento das investigações, foi possível descortinar as ramificações da organização criminosa no governo do Estado do Tocantins durante a gestão de Mauro Carlesse, fechando um dos elos do gravíssimo episódio de corrupção, desmandos e retaliação capitaneado pelo ex-governador e seu grupo político, evento este apurado em detalhes na Operação Éris da Polícia Federal", indica o relatório.
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O esquema teria se enraizado no Tocantins e fora do Estado, chegando ao Distrito Federal, Goiás e Santa Catarina, 'evidenciando sua ramificação e articulação interestadual'. A Polícia Civil sustenta que Carlesse e seu grupo promoveram 'a instrumentalização da estrutura estatal para um projeto criminoso de enriquecimento ilícito, em que os desvios de verbas públicas eram extensos, sistemáticos e permanentes'.
O relatório afirma que a organização criminosa supostamente liderada pelo ex-governador também 'atuou para obstruir o regular andamento das investigações, cooptando agentes públicos e mobilizando estruturas do governo para dificultar a ação da Polícia Judiciária'.
A tentativa de embaraço à apuração, dizem os delegados, foi confirmada na Operação Éris, da Polícia Federal, a qual 'revelou esforços deliberados do grupo criminoso para inviabilizar o avanço das apurações'.
O inquérito destaca o nome de Claudinei Aparecido Quaresemin, sobrinho do ex-governador. Ele foi secretário extraordinário de Parcerias Público-Privadas do governo do tio Carlesse. Diz a Polícia: "É o homem de confiança de seu tio Mauro Carlesse, atuando como seu intermediário junto aos demais membros da organização criminosa. Era encarregado de coordenar as ações do grupo e viabilizar os meios para consecução de seus objetivos."
No dia 1.º de fevereiro de 2019, após a reeleição de Carlesse, em outubro de 2018, ocorreu uma ampla movimentação funcional no primeiro escalão do governo. "Oportunidade em que Claudinei Quaresemin é nomeado secretário Extraordinário de Parcerias Público-Privadas."
"No topo da hierarquia da organização criminosa, há o núcleo de comando, composto por Mauro Carlesse e Claudinei Quaresemin, responsáveis por estruturar os diversos tentáculos da organização e dirigir e/ou fiscalizar a atuação dos demais integrantes em prol dos propósitos do grupo", acentua o relatório.
Segundo a Polícia, Carlesse e o sobrinho 'detinham o controle funcional dos fatos sob apuração, isto é, exerciam o comando coletivo da organização, decidindo a forma de execução das condutas criminosas'.
"O alcance dos tentáculos de influência de Claudinei Quaresemin, ultrapassando a pasta e as próprias atribuições do cargo que ocupava à época dos fatos, denota que ele não poderia estar atuando sozinho e por si, mas em nome de uma autoridade maior, no caso, o chefe do Poder Executivo, Mauro Carlesse, de quem é sobrinho e goza de absoluta confiança", crava a Polícia.
Antes mesmo do envolvimento de Carlesse com a política, ele e o sobrinho já mantinham relação comercial/societária em diversas empresas, cujas atividades tiveram início em abril de 2004.
Carlesse ingressou na vida pública em 2012, quando então se lançou candidato a prefeito de Gurupi, terceira maior cidade do Tocantins, com 90 mil habitantes, a 240 quilômetros da capital Palmas. Nessa época, Quaresemin 'passa a atuar nos bastidores, acompanhando o tio durante toda sua trajetória política no Estado do Tocantins, até o seu afastamento do governo estadual em 2021'
"Durante a gestão de Mauro Carlesse, Claudinei Quaresemin era apontado publicamente como o verdadeiro operador do governo, possuindo extrema força política e administrativa."
A Polícia descreve o papel de cada um na organização, de acordo com a avaliação dos delegados. Claudinei, 'na condição de linha de frente, dava ordens diretas aos demais integrantes do grupo, decidia a partição dos lucros da atividade criminosa, coordenava as negociações, viabilizava meios, possuindo participação ativa no esquema criminoso'.
"Nenhum ato ou pagamento relevante era realizado pelo Estado sem a autorização de Claudinei. Nesse sentido, é possível afirmar que as figuras de Mauro Carlesse e Claudinei Quaresemin estavam umbilicalmente ligadas e se confundiam em poder e controle", afirmam os delegados.
"De seu turno, na qualidade de chefe do Poder Executivo, Mauro Carlesse era o líder e integrava a organização de forma indireta, por meio de Quaresemin, que atuava como interposta pessoa nas tratativas com os demais membros do enredo delitivo."
A Polícia informa que cabia a Carlesse 'estruturar o braço do grupo criminoso' nas secretarias de Infraestrutura, Cidade e Habitação e da Fazenda, além da Agência Tocantinense de Transporte e Obras (Ageto), por meio da assinatura dos atos de nomeação.
A organização tinha um 'núcleo operacional'. Oito nomes teriam integrado essa ala, incluindo o então secretário de Infraestrutura Renato de Assunção e sua sucessora no cargo, Juliana Passarin, além de seis executivos da Agência Tocantinense de Obras.
No organograma do esquema, segundo a Polícia, também havia lugar para um 'núcleo operacional' composto por 'agentes políticos e servidores públicos, os quais eram encarregados de praticar atos de suporte à atividade criminosa com o objetivo de operacionalizar os desvios de recursos'.
O relatório cita o ex-secretário da Fazenda e Planejamento (Sefaz), Sandro Henrique Armando, 'responsável por manifestar em todos os procedimentos de execução de despesa do Estado que dependessem de ciência e análise do Grupo Executivo'. "Sua principal função no grupo criminoso era viabilizar os pagamentos em favor da Prime Construções Ltda, os quais eram posteriormente desviados em benefício da organização criminosa."
À reportagem do Estadão, Sandro Henrique, advogado, afirma que 'a investigação criminal, iniciada em 2019, e até esta data não encerrada, foi conduzida por autoridade policial incompetente e/ou sem autorização de autoridade judiciária competente, fato este que fere de morte toda a investigação' "Independente desta nulidade absoluta, nego veementemente ações ou atos imputados a mim." (leia abaixo a íntegra de seus argumentos).
A Polícia mira também Dilma Caldeira de Moura, então secretária executiva do Tesouro. "Responsável por facilitar e agilizar a execução orçamentário-financeira da Unidade Gestora do Tesouro Estadual conforme os interesses da organização." Ao Estadão, Dilma repudiou enfaticamente ligação com esquemas ilícitos. "Jamais pratiquei qualquer ato destinado a favorecer pessoa física ou jurídica, tampouco participei ou tive conhecimento de qualquer esquema ilícito envolvendo contratos, liberações orçamentárias ou ordens de pagamento." (leia abaixo a íntegra da manifestação de Dilma).
Esse núcleo, segue o relatório policial, mantinha dois eixos distintos: o eixo Seinfra/Ageto - referência à secretaria da Infraestrutura e à Agência de Obras - e o eixo Sefaz (Fazenda). "Cada um desses ramos operava de forma paralela e concorria, de forma efetiva, para a obtenção do resultado criminoso, sob a coordenação direta de Claudinei Quaresemin e indireta de Mauro Carlesse."
O eixo Seinfra/Ageto 'era o responsável por promover os atos necessários ao direcionamento da licitação à empresa previamente' escolhida - Prime Construções -, como também 'atestar falsamente, durante a execução do contrato, o cumprimento de alguns serviços contratados, mediante a elaboração de medições fraudulentas, possibilitando que a empresa recebesse a remuneração superfaturada'.
O 'eixo Sefaz', segue a Polícia, era encarregado de priorizar os pagamentos dos contratos de interesse da organização criminosa, 'contribuindo de forma eficaz e direta para o desvio dos recursos públicos'.
À época, todas as despesas de valores iguais ou superiores a R$ 100 mil dependiam de ciência e análise do Grupo Executivo para a Gestão e Equilíbrio do Gasto Público, após prévia manifestação do secretário do Planejamento e Orçamento, pasta então acumulada pelo secretário da Fazenda, 'o que favorecia o absoluto controle dos pagamentos do estado pela organização criminosa'.
Um outro grupo, denominado 'núcleo empresarial', contava seis integrantes, de acordo com a investigação. Nesse ponto, o documento cita Marcus Emmanoel Chaves Vieira, 'proprietário de fato' da Prime Construções Ltda, 'empresa de fachada utilizada pelo grupo criminoso para operacionalizar os desvios de dinheiro público mediante prestação de serviços superfaturados'.
José Francisco Alves Pereira seria o 'sócio formal' da Prime. "Atuava como interposta pessoa de Marcus Emmanoel, foi beneficiário de diversas transferências oriundas dos pagamentos do Estado do Tocantins."
Também teria integrado o 'núcleo empresarial' Geraldo Pereira da Silva Filho, superintendente da Agência Tocantinense de Transporte e Obras. Ele seria o gestor, de fato, da Proplan Construtora, empresa subcontratada pela Prime para execução de serviços previstos no contrato com o governo do Tocantins. No entendimento da Polícia, a Proplan era 'utilizada para viabilizar o desvio de parte dos recursos públicos a Geraldo e seus familiares por meio de contratos de gaveta firmados com a Prime Construções."
Os delegados Romeu Fernandes de Carvalho Filho e Guilherme Rocha Martins, da Divisão Especializada de Repressão à Corrupção, acentuam na página 17 do documento. "O núcleo empresarial era formado por empresários da construção civil e pessoas intermediárias ('laranjas'), os quais, aderindo ao propósito delitivo da organização, atuavam em conjunto para fraudar o caráter competitivo da licitação e operacionalizar os desvios de dinheiro público como forma de pagamento da propina solicitada pelo 'núcleo estatal', dissimulados através de operações de saque em espécie e contratos de gaveta ou instrumentos fictícios firmados entre a empresa contratada e empresas de 'fachada'."
Esse capítulo do relatório detalha o Contrato nº 006/2019, com a Prime Construções, sob gestão da Secretaria da Infraestrutura. "A estruturação do eixo da organização criminosa ocorreu ainda no início da gestão de Mauro Carlesse, quando foi nomeado Claudinei Quaresemin secretário de Estado da Infraestrutura, Habitação e Serviços Públicos por meio do Ato nº 579 publicado em 19 de abril de 2018. Na mesma oportunidade, Virgílio da Silva Azevedo é nomeado presidente da Agência Tocantinense de Transportes e Obras (Ageto)."
Segundo o inquérito, há indícios de que houve 'constituição fictícia da Prime, com o nítido propósito de ocultar os reais beneficiários das vultosas quantias oriundas de contratos públicos celebrados pela construtora'.
A sede declarada da empresa é uma pequena sala comercial situada na região periférica de Brasília, destacam os investigadores que fizeram buscas no endereço. Durante diligência realizada no local, a Polícia constatou que o escritório encontrava-se fechado em pleno horário comercial, 'indicando que a sede não abrigava efetivamente atividades empresariais regulares, servindo apenas como fachada para a formalização documental da construtora'.
O balanço patrimonial da Prime não apresenta bens em seu nome, segundo a Polícia. "Essa informação foi confirmada por Cíntia Vieira durante seu interrogatório. Cíntia é mulher de Marcus Emmanoel Chaves Vieira, 'sócio oculto' e verdadeiro gestor da empresa."
A investigação aponta para outro personagem, José Francisco Alves Pereira, 'sócio formal' da Prime. "Atuava na condição de 'testa de ferro, emprestando seu nome para a formalização da empresa, sem, contudo, exercer qualquer função gerencial ou controle sobre os negócios da empreiteira", diz o relatório.
A partir do exame dos diálogos extraídos do aparelho celular apreendido na sede da Prime no Distrito Federal, utilizado por José Francisco, foi identificado que o número de Marcus Emmanoel constava salvo na agenda de contatos como 'Marcos Patrão', o que, para a Polícia, 'evidencia a relação hierárquica' entre eles.
Ainda nas mensagens, os investigadores constataram que José Francisco frequentemente solicitava valores a Emmanoel 'para custeio de despesas pessoais, como pagamento de contas telefônicas, material escolar dos filhos e despesas médicas, e recebia mensalmente cerca de R$ 3 mil a título de salário informal, além de ser demandado a comparecer a instituições bancárias e assinar documentos, a mando de Marcus'.
A análise dos dados obtidos a partir do afastamento do sigilo fiscal de José Francisco demonstrou que ele 'não detém capacidade financeira compatível com a condição de sócio de empresa que movimentou milhões em contratos públicos'. O relatório chama a atenção para a 'baixa movimentação financeira' de José Francisco entre os anos de 2014 a 2018, 'além da evolução patrimonial incompatível' comunicada ao Imposto de Renda entre 2016 e 2017.
'Era o laranja'
À Polícia, um mestre de obras, Júlio César, que atuou no contrato da Prime no Tocantins, foi enfático. "José Francisco era o laranja. É uma pessoa que só fala de futebol. É o laranja da Prime. Afirmo isso na frente dele."
"A apuração demonstra que a empresa Prime Construções Ltda funcionava com uma estrutura de fachada e foi utilizada com o fim de ocultar a real identidade dos beneficiários do contrato público firmado com o Governo do Tocantins, viabilizando o desvio de recursos e dissimulação de valores oriundos de práticas ilícitas", segue o documento.
Os investigadores apontam para a subcontratação da Proplan Construtora Eireli, formalmente registrada em nome de Maria Fernanda da Cunha Silva, filha de Geraldo Pereira da Silva Filho, então superintendente de Operação e Conservação da Agência Tocantinense de Transporte e Obras.
A Proplan, diz a Polícia, era, na realidade, 'uma empresa de fachada, criada e mantida com a finalidade de viabilizar contratos com o poder público mediante a dissimulação do verdadeiro beneficiário e destinação dos recursos financeiros'.
Os policiais sustentam que a empresa apresentava sede fictícia no município de Paraíso do Tocantins, porém funcionava de fato em escritório localizado na Quadra 108 Norte, em Palmas.
"Depoimentos, documentos apreendidos e diligências de campo apontaram que o verdadeiro administrador da empresa era o próprio Geraldo, que a utilizava para operacionalizar contratos com o poder público valendo-se de sua posição estratégica dentro da Agência Tocantinense de Obras", afirma a Polícia.
Além da Proplan, 'foram identificados indícios de que Geraldo Pereira utilizava outras pessoas jurídicas em nome de terceiros para os mesmos fins, havendo elementos de prova que indicam confusão administrativa e patrimonial entre essas empresas'.
Encontros, envelopes
O relatório detalha que, durante o cumprimento das medidas de busca e apreensão autorizadas judicialmente na primeira fase da operação Via Avaritia, foram localizados três 'contratos de gaveta' que teriam sido celebrados entre a Proplan e a Prime: um contrato de locação de caminhão basculante, no valor de R$ 8 mil; outro de prestação de serviços de terraplanagem e instalação de piso intertravado na sede da Agência de Obras, no valor de R$152,9 mil; e um contrato de prestação de serviços de terraplanagem e instalação de piso intertravado na sede do Museu Palacinho, no valor de R$ 238,9 mil.
A Polícia apurou que o escritório da Proplan 'era recorrentemente utilizado como local de encontros do grupo criminoso', inclusive para entrega de 'envelopes' com dinheiro. Maria Fernanda teria sido contemplada. "Além de ter atuado conscientemente na constituição fictícia da empresa, foi beneficiada com o esquema criminoso, na medida em que parte dos valores desviados foi utilizada para quitar débitos vinculados à faculdade de medicina que a investigada cursava à época dos fatos", afirma a Polícia.
'O ciclo completo da corrupção'
Segundo o inquérito, mesmo após o início das investigações da Operação Via Avaritia, o governo Carlesse 'continuou autorizando pagamentos em benefício da organização criminosa'. O relatório informa que houve 'instrumentalização' do Grupo Gestor do governo em benefício pessoal.
"O aprofundamento das diligências revelou que o Grupo Executivo para Gestão e Equilíbrio do Gasto Público, órgão criado para controlar despesas do Estado e assegurar a responsabilidade fiscal, foi desvirtuado e utilizado pela organização criminosa para liberar pagamentos em benefício do esquema", ressalta a Polícia.
Os investigadores afirmam que 'foi constatada a fraude desde a fase inicial do procedimento licitatório, passando pela execução irregular do contrato, superfaturamento das medições e lavagem dos recursos públicos desviados, os quais retornavam aos integrantes da organização, por meio de saques em espécie, contratos fictícios e transferências indiretas, caracterizando um ciclo completo de corrupção'.
Movimentações financeiras
A Polícia rastreou movimentações financeiras subsequentes aos pagamentos efetivados pelo Tesouro estadual e verificou que a Prime Construções faturou ao Estado do Tocantins seis notas fiscais no valor total de R$ 15.625.108,96, valor que representou 53,40 % do total da ata aderida.
"Para operacionalizar o desvio das verbas públicas e dissimular a localização, disposição e propriedade do proveito econômico do crime, a organização criminosa utilizou-se de interpostas pessoas e empresas de 'fachada'."
De acordo com o Relatório de Ordem de Missão Policial do Núcleo de Inteligência no período da quebra bancária, a Prime 'repassou valores para diversas pessoas físicas e jurídicas sem justificativa aparente, indicando que as contas estavam sendo utilizadas, possivelmente, para movimentar recursos de terceiros'.
Dentre as movimentações de interesse para a investigação, o inquérito destaca diversas transferências, realizadas imediatamente após o pagamento das medições, na ordem de R$ 420 mil à conta bancária de Cíntia Marta Ataídes Vieira, além de outros valores avulsos, totalizando R$2,36 milhões no período.
Cíntia é a mulher do empresário Marcus Emmanoel, 'verdadeiro proprietário/administrador' da Prime.
"A Prime é empresa de 'fachada', utilizada pelo grupo criminoso para operacionalizar os desvios de dinheiro público mediante prestação de serviços superfaturados", afirma a Polícia.
O contrato 006/2019 foi firmado entre a construtora e o Estado do Tocantins, por intermédio da Secretaria da Infraestrutura, Cidades e Habitação (Seinfra). A origem do negócio foi Ata de Registro de Preços n.º 001.0917, no valor total pactuado de R$ 29,25 milhões, com objeto originalmente destinado à execução de obras de reforma em diversos imóveis públicos estaduais - incluindo a residência oficial do governador, a sede da Agência Tocantinense de Obras, a sede da Agência Tocantinense de Saneamento (ATS),, o anexo da Secretaria da Infraestrutura e Cidades, a sede do Parque Estadual do Cantão e a Área de Proteção Ambiental (APA) do Jalapão.
Posteriormente, por meio de aditivo contratual, o objeto foi ampliado para incluir a reforma de outros bens públicos adicionais: sete residências rodoviárias vinculadas à Agência Tocantinense de Obras; onze postos de Pesagem e Fiscalização Rodoviária, garagem Central do Estado, hangar do Estado, almoxarifados do Palácio Araguaia e da Secretaria da Infraestrurua, Museu Palacinho, Palácio Araguaia e praça dos Girassóis.
"Não obstante o vultoso montante de recursos envolvidos e a multiplicidade de imóveis públicos contemplados, o contrato foi formalizado em apenas três laudas, denotando ausência de detalhamento mínimo acerca da execução contratual, metas, cronogramas físico-financeiros, critérios de medição e controle", assinala o relatório.
Para a Polícia, 'a ampla gama de obras previstas no instrumento contratual, com características técnicas diversas e distribuídas em múltiplos imóveis, revela indícios de direcionamento e simulação de competitividade'.
"Os indícios apontam para a existência de uma grande trama delitiva, cujo objetivo seria burlar as licitações de grandes serviços de engenharia no Estado do Tocantins de forma sistemática, mediante combinação de orçamentos, loteamento de obras públicas e pagamentos."
COM A PALAVRA, O CRIMINALISTA NABOR BULHÕES, QUE REPRESENTA O EX-GOVERNADOR MAURO CARLESSE
"O relatório da Polícia Civil do Tocantins é ilegal, abusivo e inconstitucional. A Polícia Civil não detém competência nenhuma para investigar governador durante o exercício do mandato ou mesmo após o término do mandato. O foro competente é do Superior Tribunal de Justiça. A investigação tem claramente uma conotação política. Quando se falou em uma nova candidatura de Mauro Carlesse foi instaurada essa operação. Não tive acesso a esse relatório parcial, mas afirmo com absoluta convicção e segurança que o governador Carlesse não praticou nenhum ato ilícito em sua administração. De qualquer forma, o documento não tem validade, porque, reitero, é ilegal, inconstitucional. Um abuso. Uma operação policial marcada por evidente interesse político."
COM A PALAVRA, O ADVOGADO SANDRO HENRIQUE ARMANDO, EX-SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMENTO DO TOCANTINS
"Inicialmente cumpre registrar que referido relatório parcial, bem como a investigação criminal, iniciada em 2019 e até esta data não encerrada, foi conduzida por autoridade policial incompetente e/ou sem autorização de autoridade judiciária competente. Fato este que fere de morte toda a investigação.
Independente desta nulidade absoluta, nego veementemente ações ou atos imputados a mim pelas autoridades policiais e passo a esclarecer:Inicialmente registro que, dentro de 6 anos de investigação, em momento algum me foi solicitado ou determinado por qualquer autoridade policial que eu prestasse esclarecimentos ou informações sobre estes fatos.Fui nomeado Secretário de Estado da Fazenda e Planejamento do Estado do Tocantins, em 19 de abril de 2018 e me desliguei das minhas funções em 25 de outubro de 2021. Entre tantas nomeações que honrosamente recebi para representar o Estado e o governo do Tocantins, fui nomeado presidente do Grupo Executivo para Gestão e Equilíbrio do Gasto Público, instituído pelo Decreto n. 5.842, de 10 de julho 2018. O Grupo Executivo era composto, além de mim, pelo Procurador-Geral do Estado, Secretário Chefe da Controladoria Geral do Estado, Secretária Geral de Governo e Articulação Política, Secretário de Estado da Infraestrutura, Habitação e Serviços Públicos e Secretário Chefe da Casa Civil.Importante registrar que o Grupo Executivo foi instituído com a finalidade consultiva de assessoramento estratégico, auxiliando os gestores no controle do gasto público, haja vista que o Estado do Tocantins estava passando por uma grave crise fiscal, orçamentária e financeira herdada de gestões anteriores.
Além disso, pelo Grupo Executivo, durante estes quase 4 anos, passaram solicitações orçamentárias e financeiras de todas as secretarias e órgãos da administração pública direta e indireta na ordem de aproximadamente R$.40 bilhões.Neste diapasão, a atuação do Grupo Executivo tinha como incumbência precípua analisar, acompanhar, definir diretrizes e propor medidas relacionadas à contenção ou racionalização dos gastos públicos e ao desempenho da gestão por resultados fiscal e de contas do Estado do Tocantins.O Grupo Executivo se reunia semanalmente para analisar todas as solicitações de liberação orçamentária, definição de prioridades de gasto, contratações, prorrogações de serviços e demais matérias com impacto fiscal.
Todas as orientações e opiniões eram produzidas sempre pelo grupo, nunca individualmente. Registre-se ainda que o Grupo Executivo não era ordenador de despesas, ou seja, não efetuava pagamentos e tão pouco fazia qualquer análise de documentos e de processos internos de cada secretaria ou órgão de governo.
Nos termos expressos do Decreto nº 5.842/2018, o Grupo Executivo possuía caráter estritamente opinativo, sem qualquer competência para decidir, aprovar ou interferir na regularidade das contratações. A análise jurídica, a fiscalização da execução e os atos de liquidação das despesas cabiam exclusivamente às unidades gestoras, responsáveis por todos os trâmites operacionais e administrativos da despesa pública.O objetivo do Grupo Executivo foi extremante exitoso, tendo em vista que o Estado do Tocantins que em 2018 estava sem condições financeiras e orçamentárias de pagar suas obrigações mais corriqueiras, com dificuldade de pagar os salários dos seus servidores para outubro 2021, ter no caixa próprio do Governo do Estado aproximadamente R$ 2 bilhões de recursos financeiros próprios.Portanto, diante desses breves relatos e esclarecimentos, reitero que jamais participei de qualquer organização com objetivo de desviar ou facilitar o pagamento a qualquer pessoa física ou jurídica, ao contrário o nosso objetivo sempre foi, quer como secretário de fazenda e planejamento quer como presidente do grupo executivo, o controle do gasto e a boa utilização de todos os recursos públicos. O relatório parcial, ao me atribuir a função de executor de pagamentos, revela completo desconhecimento sobre a natureza institucional do Grupo Executivo e sobre os fluxos administrativos do Estado. Nenhuma das imputações que constam no documento é acompanhada de prova, individualização de conduta ou vínculo direto com qualquer fato típico."
Sandro Henrique Armando, advogado
COM A PALAVRA, DILMA CALDEIRA DE MOURA, EX-SECRETÁRIA EXECUTIVA DO TESOURO
"Inicialmente, cumpre destacar que minha trajetória profissional émarcada por 27 anos de atuação técnica contínua no serviço público do Estado, todos eles exercidos com responsabilidade, probidade e dedicação à função pública.No que se refere à minha atuação enquanto integrante do quadroda Secretaria da Fazenda como Secretária Executiva do Tesouro, esclareço que jamais pratiquei qualquer ato destinado a favorecer pessoa física ou jurídica, tampouco participei ou tive conhecimento de qualquer esquema ilícito envolvendo contratos, liberações orçamentárias ou ordens de pagamento.A rotina administrativa, à época dos fatos, seguia um ritoinstitucional padronizado, no qual minha atuação limitava-se aos trâmites técnicos próprios e inerentes da função. A saber: após a análise das solicitações orçamentárias pelas secretarias setoriais, o pleito era submetido ao Grupo Executivo de Gestão e Equilíbrio Fiscal, órgão de caráter consultivo, criado pelo Decreto nº 5.842/2018.
Após análise colegiada, quando aprovada, a solicitação era numerada e lançada no sistema Sigap. Somente após isso é que a Secretaria da Fazenda - por meio do Tesouro Estadual - realizava a liberação do saldo orçamentário à secretaria responsável, a qual, por sua vez, detinha a autonomia sobre a execução do pagamento. Dessa forma, registro que a Secretaria da Fazenda não ordenava despesas nem fazia juízo de conveniência sobre os beneficiários finais. Apenas operava o fluxo financeiro com base em critérios objetivos, centralizados no sistema oficial do Estado. Rejeito, com veemência, qualquer tentativa de vincular minha conduta a esquemas ilícitos, especialmente por meio de interpretações descontextualizadas de funções puramente técnicas, como se o simples cumprimento de rotinas orçamentárias configurasse conivência com desvios de finalidade de terceiros. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de criminalização indevida da função administrativa, ignorando os rígidos controles internos que estruturam o fluxo financeiro da administração pública."
COM A PALAVRA, O EMPRESÁRIO MARCUS EMMANOEL CHAVES VIEIRA, DA PRIME CONSTRUÇÕES
O empresário Marcus Emmanoel Chaves Vieira, proprietário da Prime Construções Ltda, afirmou ao Estadão que não houve nenhuma irregularidade no âmbito do contrato com o governo do Tocantins. "Prestamos os serviços contratados. Nosso contrato foi auditado pelo Tribunal de Contas do Estado que apontou um dano ao erário no montante de R$ 1,37 milhão. Firmamos um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Tribunal e com a Secretaria de Estado da Infraestrutura."
Ao Estadão, Marcus Emmanoel disse que a auditoria do TCE abordou relatórios de medição e inspeções nos locais onde os serviços foram realizados. As falhas indicadas pelos auditores resultaram na multa de R$ 1.372.707,29. "O TAC incluiu a obrigação de execução de obras na praça do Girassol e outros serviços do governo estadual, cobrindo o valor. Da nossa parte foi isso."
Marcus Emmanoel relata que a Proplan Construtora é que estava sob investigação. "Essa empresa, pertencente à filha do gerente de outro órgão, prestou um serviço pequeno para a Prime. Fizemos uma concorrência para um serviço muito específico, a gente não tinha maquinário à época, eles ganharam no menor preço. Fizemos tomada de preços com três empresas, a deles (Proplan) levou pelo menor preço. A Proplan executou aquela parte, emitiu nota fiscal, coisa de cento e poucos mil. Essa empresa estava sendo investigada. Quando a Polícia fez buscas na Proplan encontrou o nosso recibo pelo serviço que contratamos deles. Por isso, fomos envolvidos na Operação Via Avaritia. Na verdade, a Proplan é que estava sendo investigada."
"Fizemos tudo como manda o figurino", afirma. "Fomos alvos de busca e apreensão, a Polícia levou documentos e ficou nisso. Não fomos mais procurados."
O empresário rebate o trecho do relatório policial que classifica a Prime como 'empresa de fachada' com sede em uma pequena sala na periferia de Brasília. "Empreiteira não tem que ter escritório bonito, ela tem que ser avaliada por sua competência na execução de seus serviços. Não há motivo para requintes, não atendemos clientes, público externo. A Polícia não tem que achar cadeiras de couro no nosso escritório. Essa observação é a prova que não há fatos contra a Prime. Quando não se tem um argumento, vão para o genérico. Somos uma empresa idônea, apenas em 2029 fizemos R$ 30 milhões em obras para órgãos federais, estaduais e municipais. Nós tínhamos obras em todos os segmentos, várias esferas. Já fizemos obras até em Tribunal de Contas."
Ele diz que no Tocantins a Prime mantém 'mais de 30 colaboradores com carteira assinada, tudo regularizado, engenheiro residente inclusive'. "Em nenhum momento a Prime fugiu de suas responsabilidades, jamais nos omitimos. Quando houve a busca e apreensão em nosso endereço em Brasília, na mesma hora nosso Jurídico entrou em contato com a Polícia e nos prontificamos a depor."
Marcus Emmanoel afirma que não tem ligação com o ex-governador Mauro Carlesse; "Eu vi o governador duas vezes, pessoalmente. Amizade? Eu nem sabia como ela era. Uma vez o encontrei no lançamento do projeto da reforma da residência oficial, uma outra vez durante vistoria de obras. Nossos contratos eram sempre com a Secretaria da Infraestrutura, na ocasião dirigida pelo Renato de Assunção, depois pela Juliana Passarin. A gente tratava com a equipe técnica, com o Carioca, gestor do contrato, e com o fiscal Oscar. Nunca tratamos nada politicamente com alguém do governo."
O empresário destaca que o relatório 01/2020 do Tribunal de Contas do Estado foi elaborado por dois auditores. "Quando houve isso, a Secretaria da Infraestrutura nos chamou e avisou que estavam apontando irregularidades nos serviços. Era plena pandemia, os insumos da construção civil já tinham triplicado de preço, o contrato por si só já nem compensava para a empresa, a mão de obra a valores estratosféricos, material que se comprava por 50 foi para 120, as fábricas pararam. Entregamos à Polícia Civil os três orçamentos que fizemos, resultando na subcontratação da Proplan, a nota fiscal que emitimos e o nosso pagamento, saindo da conta da Prime para a conta da Proplan. Ora, isso é propina? Com nota fiscal? A gente fez um trabalho sério. Podem investigar."
COM A PALAVRA, OS OUTROS CITADOS NO RELATÓRIO DA POLÍCIA CIVIL DO TOCANTINS
O Estadão fez contato com outros citados no extenso relatório da Polícia Civil do Tocantins, mas não havia obtido retorno até a publicação deste texto. O espaço segue aberto (fausto.macedo@estadao.com; rayssa.motta@estadao.com)